Retornei a cidade onde me criei, após trinta e dois anos de ausência, estivera sempre muito ocupado com as coisas do oficio, vendo e revendo casos, quase não saia do escritório, e quando saia, ele parecia continuar dentro de mim. O trabalho parecia ter se tornado um vicio, me fizera deixar todas as idéias de grandes planos de lado, por não poder executá-las por tempo ou, às vezes, por ter que desocupar espaço na memória para guardar as resoluções dos processos. Mas voltemos ao meu retorno, antes, porém, deixe-me expor os motivos, os que me forçaram a sair, e a voltar, e antes destes, permita-me que me apresente, sou Pedro Ortiz de Barcelos, advogado, com escritório no centro de São Paulo, vim de Ouro Preto em Minas Gerais, já deves ter ouvido falar dela. Agora que já me apresentei, deixe-me relatar os motivos, entretanto, leitor, digo-lhe, para que não fiques ansioso para saber o final da historia ou saber do que se trata, o que é aqui contado não passa de um relato de uma vida real, algo que poderia acontecer com qualquer um, mas que venho a expor no papel, por tanto não esperes por muito, o que aqui se passará, já é conhecido por ti.
O principal motivo que me fez sair, estava em uma casa que fica a duas de distancia, e na minha própria. Vou explicar melhor: A duas casas da minha, veio a se mudar, quando tinha sete anos de idade, uma nova família. Diga-se de passagem, eram muito simpáticos. Minha mãe e meu pai foram os primeiros a conhecê-los, se ofereceram para ajudar a arrumar a mobília, apresentar a vizinhança, a cidade, e como haveria de ser, até por lógica, nos tornamos famílias amigas, as duas famílias passavam horas umas nas casas das outras, falando sobre assuntos variados, tomando café. Lembro-me que eu ficava ao lado da minha mãe, não era de muitas palavras, e que palavras poderiam dizer um garoto de sete anos em uma conversa de adultos? Mas não era por isso que me mantinha calado, a timidez me forçara a isso, principalmente na presença da filha do casal recém chegado, eis o motivo da casa que fica a duas de distancia, ela era linda, todos da vizinhança diziam o mesmo, isso me deu a certeza que não era a cegueira da paixão que a fazia a mais bela das criaturas, mas não vamos gastar tinta e tempo com descrições físicas, se queres saber esses detalhes, colocarei alguns então, era morena, de cabelos levemente cacheados e castanhos, lindos, iam até a cintura, eram belíssimos, e quando balançados pelo ar, ou até mesmo por um movimento rápido, pareciam deslizar, sem atrito, como se o próprio ar, que desarruma tantos cabelos, tivesse medo de ir contra os dela, e seus olhos, eram castanhos, claríssimos, refletiam qualquer feixe de luz que houvesse, só para se fazerem reluzentes, eram como a cor do mel. Quanto às outras características, ao meu contrario, ela não era tímida, acho que foi isso que me encantou, ela que quebrara meu silencio, sempre que ia a sua casa, ela chamava-me para ir ao seu quarto, sua mãe dizia que passava o dia a me esperar, nós brincávamos, éramos dois criançolas. O tempo passou, nós crescemos, e o sentimento foi aflorando, descobrimos que nos gostávamos, confessamos um para o outro, no mesmo dia, dissemos que não dava mais para manter isso escondido, já que se tratava de algo tão grande, mas minha mãe também desconfiara que houvesse algo mais que amizade entre a gente, e como, não se sabe por que, as meninas que não são quietas, são menos tímidas, não são bem vistas aos olhos dos pais, minha mãe quis proibir o nosso “relacionamento”, que na época não passava de andar de mãos dadas. Não queria terminar, e também não queria decepcionar minha mãe, então passei a me encontrar as escondidas com Fernanda, saíamos as tardes, quando falávamos que iríamos a biblioteca estudar, mas acabamos sendo descobertos, para minha mãe isso bastou, nunca entendi o porquê de tanta raiva. Ela me mandou para São Paulo, aos quinze anos de idade, na despedida, Fernanda e eu, demos o nosso beijo mais intenso, choramos juntos, ficamos assim até que o ônibus chegou para buscar-me, não falamos muito, não tinha o que ser dito, o silencio bastou para demonstrar o quanto era sincero o que sentíamos, quando parti, não pensava em outra coisa, só Fernanda ocupava meus pensamentos, pensava em como viveria sem ela, se ela haveria de casar com outro, nesse mesmo tempo jurei que não haveria de casar com outra mulher. E esse é o motivo que me fez sair de Ouro Preto, a minha vida em São Paulo, não necessita de detalhes, estudei direito quando fiz dezoito, e depois de formado, trabalhei, sem tempo para distrações, apenas saídas com os antigos amigos de universidade, não custa dizer que não consegui esquecer Fernanda, mas não me passava pela mente a possibilidade de reencontrá-la, pensava que já teria se mudado e constituído família, passei a me acostumar com essa idéia, o que me trouxe um pouco de conforto ao sofrimento de me ver sem ela, por tanto ela não é o motivo que me fez voltar. Já havia tempo que deixei Ouro Preto, o contato com minha mãe se dava por correspondência, eu perguntava por Fernanda, ela não me respondia, apenas falava de seu cotidiano e perguntava sobre o meu.
Um dia em quanto andava, pela praça, um mendigo cego que pedia dinheiro, a quem eu deixei umas duas moedas, olhando para o nada sem saber quem havia dado as moedas, disse:
-Que Deus te abençoe! - Eu parei depois que ele disse, e fiquei fitando-o, pensando, mas não me lembro em que, ele se virou, segundos depois de pronunciar a frase anterior, e como se olhando em minha direção disse - Tu és feliz? - E se virou novamente, voltando ao seu estado normal, eu me virei apressei o passo, e não me distrai da pergunta, pensei nela durante dois dias seguidos, sem conseguir resposta, foi o que me levou a questionar o que fazia em São Paulo se não era o que eu realmente queria. Pensei em tirar dias para relaxar, mas aonde? Me veio a idéia de retornar as origens, reviver o passado, encontrar minha mãe, meu pai, abraçá-los, isso me levou a tirar as primeiras férias.E eis o motivo que me fez voltar, um mendigo cego, esse fato me fez pensar que esse mendigo não estava ali por acaso, foi algo a mais, talvez um enviado de Deus.
Quando voltei, passei pelo centro, onde Fernanda e eu costumávamos nos encontrar, mas passei direto, a saudade dos meus pais era o foco, fui o mais rápido que pude para a casa, ela permanecia do mesmo modo, até a mobília era a mesma, só mudara algumas coisas, e a posição delas, minha mãe continuava moça, não tão jovem quanto antes, mas não aparentava a idade que tinha, meu pai havia morrido, ela não me contou nas cartas para não me atrapalhar os estudos, eu chorei nos seus braços, e como estava com saudade dos braços, mas não queria ressenti-los dessa forma, o motivo que me trazia as lagrimas aos olhos, não deixava matar a saudade, queria senti-los, com um sorriso, com felicidade, não aos prantos. Descansei aquele dia, o passei ao lado de minha mãe, relembrando o passado, e rindo dele, foi o dia mais proveitoso da minha vida. No outro dia, fui rever a casa de Fernanda, a família tinha se mudado novamente, não perguntei sobre eles a minha mãe, para não relembrar o motivo que me fez sair da cidade, e manter a felicidade presente, depois fui rever os lugares que tínhamos ficado juntos, cada lugar era uma lembrança, podia quase que enxergar as coisas acontecendo ali, Fernanda e eu, juntos, aos sete anos, foi uma sensação única e indescritível, fiquei por horas só lembrando de como foi a infância naquele local, cada passo, cada momento, com cada detalhe, foi como redescobrir as coisas que importam, fiquei por ultimo me perguntando por que não regressei antes, por que precisou de trinta anos. Descobri que isso foi, e é a minha felicidade, e descobri tudo, graças a um mendigo.